terça-feira, dezembro 20, 2005
PROVEDORIAS
Por um jornalismo com memória
José Carlos Abrantes
Onde a memória dos políticos falha, a dos jornalistas deve pontificar
O DN de quinta feira, 8 de Dezembro, inseriu a seguinte nota do Gabinete de Imprensa do PCP: “O DN de ontem destaca “Ex-dirigente do PCP apoia Cavaco”. Ora acontece que a notícia se refere a Veiga de Oliveira, que aderiu ao PS em Janeiro de 1999, em cerimónia pública apadrinhada por Mário Soares e Manuel Alegre (ver DN de 8/1/99), depois de há 15 anos ter abandonado o PCP. Portanto, o DN, em vez de Ex-dirigente do PCP apoia Cavaco devia ter dado à notícia o título de Militante do PS apoia Cavaco. Mas o facto de a notícia omitir, vá-se lá saber porquê, a actual filiação partidária de Veiga de Oliveira levanta a questão de saber se alguém que sai do PCP passa a ser definido por ex-PCP ou por aquilo que de facto é, nomeadamente quanto às opções políticas que assume e aos partidos em que se integra. Mas levanta também a questão de saber se o prazo de validade para um ex-PCP é dez, 20 ou 30 ou mais anos e se é atribuído a todos ou apenas a alguns. Isto é, trata-se de saber se o critério que leva o DN a qualificar Veiga de Oliveira como ex-PCP se aplica, por exemplo, a Pina Moura, ao ministro Mário Lino ou aos candidatos Mário Soares e Manuel Alegre.”
Este texto, publicado na Tribuna Livre, levanta o problema da memória no jornalismo. Neste caso, foi esquecida a filiação recente e lembrada uma filiação antiga. E o texto não deixa de reflectir, com alguma ironia, sobre os critérios dessa memória, viva sobre acontecimentos mais antigos, inexistente sobre assuntos recentes. Nem sempre é assim. Nem no jornalismo, nem no PCP. O inverso é o mais frequente. Porém, onde a memória dos políticos e de outros actores sociais falha, voluntaria ou inadvertidamente, a dos jornalistas deve pontificar. Os jornalistas respigam toda a informação pertinente que contextualize e faça compreender aos leitores a vida política e social. Não podem confiar apenas nas declarações das fontes e dos protagonistas. Terão que passar algum tempo nos serviços de documentação ou nas pesquisas on line, em leituras especializadas ou em cursos de actualização para poderem ser mais eficazes a coligir informação pertinente, acrescentadora de factos, dados e interpretações que já foram avançadas noutros contextos. Essa é uma das riquezas do jornalismo: o valor acrescentado em informação. Tal valor só se consegue pela colaboração social e profissional no interior das redacções. O jornalismo é uma responsabilidade partilhada numa profissão colectiva. Este espírito é fácil de entender pois passa também pela cooperação e partilha de responsabilidades entre os jornalistas, os editores, os editores executivos, os directores. Embora, por vezes, no terreno concreto, esta cooperação e partilha de responsabilidades seja de difícil reconhecimento.
Solicitei a Francisco Almeida Leite os esclarecimentos convenientes, com conhecimento ao editor, como faço habitualmente. O jornalista considerou que a “informação fica mais completa com o dado adicional de que Álvaro Veiga de Oliveira é actualmente militante socialista (e com as quotas em dia, como refere à “Visão”)." É indiscutível que a peça ficaria mais completa se tivesse referido a filiação partidária actual de Veiga de Oliveira. O jornalista fez essa alusão na peça publicada vinte e quatro horas depois, no dia em que foi publicada a nota do PCP, na Tribuna Livre. “Não quis omitir a informação de que Veiga de Oliveira é militante do PS, caso contrário não a teria dado na segunda notícia publicada 24 horas depois.” Só não se entende porque, logo na primeira notícia, a militância actual não foi referida, o que teria retirado terreno ao protesto. Parece então ter havido algo que, parcialmente, justificou essa omissão. Francisco Almeida Leite sustenta “ser indiscutível que o nome de Veiga de Oliveira está muito mais associado ao PCP do que ao PS, onde nunca passou de um militante anónimo.
É um também facto que este importantíssimo ex-dirigente comunista aderiu ao PS em Janeiro de 1999, numa cerimónia pública, no Grémio Literário, apadrinhada não só por Mário Soares e Manuel Alegre (como diz a nota, com o efeito pretendido mais que óbvio), mas também por António Guterres, António de Almeida Santos e Joaquim Pina Moura. Uma informação que, registe-se, eu dou logo no dia seguinte (quando é também publicada a nota) e que, segundo julgo saber, constitui a única notícia naquela semana sobre o apoio de Veiga de Oliveira à candidatura presidencial de Cavaco Silva em que é expressamente referenciado que ele é militante do PS.” De facto, numa notícia semelhante, no Público, também apenas se referia a qualidade militante ex-comunista de Veiga de Oliveira.
Trata-se de um caso em que a memória de um passado bem marcado ofusca um presente mais discreto. Aos jornalistas cabe o dever de memória, mas este não pode ser selectivo. Seria despropositado esquecer o passado militante de Veiga Oliveira no PCP. E seria injusto dar o mesmo relevo ao presente socialista e ao passado de dirigente comunista deste cidadão. Este último foi de maior relevo e repercussão na vida pública.
A memória do passado, a espera do futuro e a atenção ao presente ordenam a maior parte dos ritos africanos, afirma Marc Augé, etnólogo (Les Formes de l’Oubli, Éditions Payot & Rivages). Assim possamos cumprir algo semelhante, com rigor, nas nossas sociedades.
Debates presidenciais
Os debates televisivos sobre as presidenciais que terminam hoje foram acompanhados no DN com uma particularidade que apraz registar. Cada debate, novos comentadores. Uma medida ágil que introduziu novas caras e pluralismo.
BLOCO NOTAS
Passado comunista
Francisco Almeida Leite acrescenta ainda motivos pelos quais o passado comunista de Veiga de Oliveira deve ser devidamente sublinhado: “Veiga de Oliveira foi um dirigente comunista de destaque antes do 25 de Abril, ainda na clandestinidade, e logo após foi duas vezes ministro das Obras Públicas e Equipamento Social, nos IV e VI governos provisórios. De 1976 a 1984 foi vice-presidente do grupo parlamentar do PCP na Assembleia da República e mais tarde entrou em rota de colisão com a direcção de Álvaro Cunhal. Elaborou documentos estratégicos apelando a reformas no interior do partido e o chamado “Grupo dos Seis”, que integrou com Vital Moreira, entre outros, acabou por ter um papel relevante ao abrir caminho a muitas cisões entre os comunistas. No PS, onde milita desde 1999, não teve militância política activa nestes poucos anos e agora aparece ao lado de Cavaco Silva, candidato apoiado por PSD e CDS/PP.
Em qualquer caso, o passado dos políticos é sempre um factor a ter em conta quando se elaboram notícias deste género. Não numa notícia de agenda, do dia-a-dia, mas numa que marque de alguma forma um regresso ou um facto novo, como esta evidenciava. Se não fosse assim, o passado maoísta de José Manuel Durão Barroso e a sua militância na juventude no PCTP/MRPP não seria lembrada passados 30 anos, quando assumiu a liderança do PSD, quando chegou a primeiro-ministro (em vários debates da campanha das legislativas de 2002) ou mais recentemente na imprensa estrangeira quando chegou a presidente da Comissão Europeia." Ou seja: um dirigente do PSD, da União Europeia, ou do PCP perde mais dificilmente a qualidade de ex- do que um mero militante (caso de Veiga de Oliveira no PS) ou de um artista. E deixemos, sem azedume, que a memória das dissidências, da história dos movimentos ou das instituições sejam objecto de trabalhos jornalísticos ou ensaísticos fundamentados.
Memória activa
Nem sempre o jornalismo activa devidamente a memória dos factos. José Pacheco Pereira declarou num debate recente: "(..) a memória activa seria muito importante nos jornais, mas este tipo de memória é pouco usual na imprensa portuguesa. Porque é que isso acontece? Porque há uma aceleração do tempo mediático e há um efeito de novidade. Como o sistema mediático valoriza a novidade, valoriza o rotação muito rápida das notícias e das emoções e isso favorece o esquecimento. Não é algo que derive apenas da formação específica dos jornalistas. É também um problema dos mecanismos mediáticos que são muito acelerados.”
Escreva
Escreva sobre a informação do DN para provedor2005@dn.pt
Para outros assuntos : dnot@dn.pt
Crónica publicada em 19 de Dezembro 2005
Por um jornalismo com memória
José Carlos Abrantes
Onde a memória dos políticos falha, a dos jornalistas deve pontificar
O DN de quinta feira, 8 de Dezembro, inseriu a seguinte nota do Gabinete de Imprensa do PCP: “O DN de ontem destaca “Ex-dirigente do PCP apoia Cavaco”. Ora acontece que a notícia se refere a Veiga de Oliveira, que aderiu ao PS em Janeiro de 1999, em cerimónia pública apadrinhada por Mário Soares e Manuel Alegre (ver DN de 8/1/99), depois de há 15 anos ter abandonado o PCP. Portanto, o DN, em vez de Ex-dirigente do PCP apoia Cavaco devia ter dado à notícia o título de Militante do PS apoia Cavaco. Mas o facto de a notícia omitir, vá-se lá saber porquê, a actual filiação partidária de Veiga de Oliveira levanta a questão de saber se alguém que sai do PCP passa a ser definido por ex-PCP ou por aquilo que de facto é, nomeadamente quanto às opções políticas que assume e aos partidos em que se integra. Mas levanta também a questão de saber se o prazo de validade para um ex-PCP é dez, 20 ou 30 ou mais anos e se é atribuído a todos ou apenas a alguns. Isto é, trata-se de saber se o critério que leva o DN a qualificar Veiga de Oliveira como ex-PCP se aplica, por exemplo, a Pina Moura, ao ministro Mário Lino ou aos candidatos Mário Soares e Manuel Alegre.”
Este texto, publicado na Tribuna Livre, levanta o problema da memória no jornalismo. Neste caso, foi esquecida a filiação recente e lembrada uma filiação antiga. E o texto não deixa de reflectir, com alguma ironia, sobre os critérios dessa memória, viva sobre acontecimentos mais antigos, inexistente sobre assuntos recentes. Nem sempre é assim. Nem no jornalismo, nem no PCP. O inverso é o mais frequente. Porém, onde a memória dos políticos e de outros actores sociais falha, voluntaria ou inadvertidamente, a dos jornalistas deve pontificar. Os jornalistas respigam toda a informação pertinente que contextualize e faça compreender aos leitores a vida política e social. Não podem confiar apenas nas declarações das fontes e dos protagonistas. Terão que passar algum tempo nos serviços de documentação ou nas pesquisas on line, em leituras especializadas ou em cursos de actualização para poderem ser mais eficazes a coligir informação pertinente, acrescentadora de factos, dados e interpretações que já foram avançadas noutros contextos. Essa é uma das riquezas do jornalismo: o valor acrescentado em informação. Tal valor só se consegue pela colaboração social e profissional no interior das redacções. O jornalismo é uma responsabilidade partilhada numa profissão colectiva. Este espírito é fácil de entender pois passa também pela cooperação e partilha de responsabilidades entre os jornalistas, os editores, os editores executivos, os directores. Embora, por vezes, no terreno concreto, esta cooperação e partilha de responsabilidades seja de difícil reconhecimento.
Solicitei a Francisco Almeida Leite os esclarecimentos convenientes, com conhecimento ao editor, como faço habitualmente. O jornalista considerou que a “informação fica mais completa com o dado adicional de que Álvaro Veiga de Oliveira é actualmente militante socialista (e com as quotas em dia, como refere à “Visão”)." É indiscutível que a peça ficaria mais completa se tivesse referido a filiação partidária actual de Veiga de Oliveira. O jornalista fez essa alusão na peça publicada vinte e quatro horas depois, no dia em que foi publicada a nota do PCP, na Tribuna Livre. “Não quis omitir a informação de que Veiga de Oliveira é militante do PS, caso contrário não a teria dado na segunda notícia publicada 24 horas depois.” Só não se entende porque, logo na primeira notícia, a militância actual não foi referida, o que teria retirado terreno ao protesto. Parece então ter havido algo que, parcialmente, justificou essa omissão. Francisco Almeida Leite sustenta “ser indiscutível que o nome de Veiga de Oliveira está muito mais associado ao PCP do que ao PS, onde nunca passou de um militante anónimo.
É um também facto que este importantíssimo ex-dirigente comunista aderiu ao PS em Janeiro de 1999, numa cerimónia pública, no Grémio Literário, apadrinhada não só por Mário Soares e Manuel Alegre (como diz a nota, com o efeito pretendido mais que óbvio), mas também por António Guterres, António de Almeida Santos e Joaquim Pina Moura. Uma informação que, registe-se, eu dou logo no dia seguinte (quando é também publicada a nota) e que, segundo julgo saber, constitui a única notícia naquela semana sobre o apoio de Veiga de Oliveira à candidatura presidencial de Cavaco Silva em que é expressamente referenciado que ele é militante do PS.” De facto, numa notícia semelhante, no Público, também apenas se referia a qualidade militante ex-comunista de Veiga de Oliveira.
Trata-se de um caso em que a memória de um passado bem marcado ofusca um presente mais discreto. Aos jornalistas cabe o dever de memória, mas este não pode ser selectivo. Seria despropositado esquecer o passado militante de Veiga Oliveira no PCP. E seria injusto dar o mesmo relevo ao presente socialista e ao passado de dirigente comunista deste cidadão. Este último foi de maior relevo e repercussão na vida pública.
A memória do passado, a espera do futuro e a atenção ao presente ordenam a maior parte dos ritos africanos, afirma Marc Augé, etnólogo (Les Formes de l’Oubli, Éditions Payot & Rivages). Assim possamos cumprir algo semelhante, com rigor, nas nossas sociedades.
Debates presidenciais
Os debates televisivos sobre as presidenciais que terminam hoje foram acompanhados no DN com uma particularidade que apraz registar. Cada debate, novos comentadores. Uma medida ágil que introduziu novas caras e pluralismo.
BLOCO NOTAS
Passado comunista
Francisco Almeida Leite acrescenta ainda motivos pelos quais o passado comunista de Veiga de Oliveira deve ser devidamente sublinhado: “Veiga de Oliveira foi um dirigente comunista de destaque antes do 25 de Abril, ainda na clandestinidade, e logo após foi duas vezes ministro das Obras Públicas e Equipamento Social, nos IV e VI governos provisórios. De 1976 a 1984 foi vice-presidente do grupo parlamentar do PCP na Assembleia da República e mais tarde entrou em rota de colisão com a direcção de Álvaro Cunhal. Elaborou documentos estratégicos apelando a reformas no interior do partido e o chamado “Grupo dos Seis”, que integrou com Vital Moreira, entre outros, acabou por ter um papel relevante ao abrir caminho a muitas cisões entre os comunistas. No PS, onde milita desde 1999, não teve militância política activa nestes poucos anos e agora aparece ao lado de Cavaco Silva, candidato apoiado por PSD e CDS/PP.
Em qualquer caso, o passado dos políticos é sempre um factor a ter em conta quando se elaboram notícias deste género. Não numa notícia de agenda, do dia-a-dia, mas numa que marque de alguma forma um regresso ou um facto novo, como esta evidenciava. Se não fosse assim, o passado maoísta de José Manuel Durão Barroso e a sua militância na juventude no PCTP/MRPP não seria lembrada passados 30 anos, quando assumiu a liderança do PSD, quando chegou a primeiro-ministro (em vários debates da campanha das legislativas de 2002) ou mais recentemente na imprensa estrangeira quando chegou a presidente da Comissão Europeia." Ou seja: um dirigente do PSD, da União Europeia, ou do PCP perde mais dificilmente a qualidade de ex- do que um mero militante (caso de Veiga de Oliveira no PS) ou de um artista. E deixemos, sem azedume, que a memória das dissidências, da história dos movimentos ou das instituições sejam objecto de trabalhos jornalísticos ou ensaísticos fundamentados.
Memória activa
Nem sempre o jornalismo activa devidamente a memória dos factos. José Pacheco Pereira declarou num debate recente: "(..) a memória activa seria muito importante nos jornais, mas este tipo de memória é pouco usual na imprensa portuguesa. Porque é que isso acontece? Porque há uma aceleração do tempo mediático e há um efeito de novidade. Como o sistema mediático valoriza a novidade, valoriza o rotação muito rápida das notícias e das emoções e isso favorece o esquecimento. Não é algo que derive apenas da formação específica dos jornalistas. É também um problema dos mecanismos mediáticos que são muito acelerados.”
Escreva
Escreva sobre a informação do DN para provedor2005@dn.pt
Para outros assuntos : dnot@dn.pt
Crónica publicada em 19 de Dezembro 2005