segunda-feira, dezembro 26, 2005
PROVEDORIAS
Acontecimentos do quotidiano
José Carlos Abrantes
Estamos longe do sangue, suor e lágrimas de algumas versões editoriais dos faits divers.
Os acontecimentos do quotidiano, mais conhecidos por “faits divers”, são objecto de notícia no DN. Para verificar qual a frequência e o tipo de tratamento que o jornal dá a estes acontecimentos, analisámos doze primeiras páginas do DN, os dias 15 de 2005. Além disso, seguimos o modo como foi relatado o caso da bébé de Viseu, Fátima Letícia, entre 14 e 23 de Dezembro, aliás um dos assuntos de uma das primeiras páginas.
Segundo Fernando Cascais (1), os “faits divers” são acontecimentos que estão ligados a paixões e pulsões humanas, sendo uma matéria recolhida da vida corrente. Mas a definição deste campo é complexa. Nos últimos anos o acontecimento de quotidiano ganhou uma dimensão social e o seu tratamento nos media generalizou-se, embora a partir de escolhas editoriais muito diversificadas.
Alguns autores consideram a particularidade que é estes acontecimentos relevarem da revogação de uma norma: norma natural (catástrofes, fenómenos inabituais), norma legal (delitos, roubos, raptos), norma humana (feitos incríveis, caprichos da natureza), norma moral (adultérios, incestos), mesmo um norma forjada pelo hábito. Alguns consideram o “fait divers” como uma narrativa que abastarda o jornalismo. Mas há nomes célebres associados ao estudo do tema. Roland Barthes, um famoso semiólogo francês, defendeu que o assassinato político se distingue do “vulgar” assassinato (faits divers) por este não ter dimensão histórica. Outro nome que se associa ao tratamento jornalístico de tais acontecimentos é Jean Paul Sartre. Este intelectual declarou em 1964 que a imprensa de esquerda não deveria deixar este terreno livre. Mesmo assim, o “fait divers” é frequentemente associado ao anedótico. Outros acentuam o carácter revelador dos problemas sociais dos “fait divers” ou mesmo a função de alerta que tais relatos desencadeiam.
Voltemos às primeiras páginas. Apenas duas, em doze, referem assuntos deste tipo. Uma delas é a de 15 de Novembro, segundo dia em que a criança maltratada é notícia. O DN titulou nesse dia “PJ critica comissão de menores no caso de bébé maltratada pelos pais.” A outra referência foi feita em 15 de Outubro de 2005 “Acusação pede 24 anos de prisão para mãe e tio de Joana”, uma notícia sobre o caso do julgamento da mãe e tio de uma criança assassinada no Algarve. Pela amostra, alguma sobriedade.
Como evoluiu o tratamento noticioso? Na primeira notícia a bébé não é identificada pelo nome, o que acontece logo no segundo dia. E nesse dia, a notícia, embora referindo o estado da vítima, em coma, introduz um elemento de crítica, formulada pela Polícia Judiciária à Comissão de Protecção de Menores de Viseu. O assunto ganha relevo e torna-se Tema do dia, logo no dia a seguir. As críticas oriundas da Polícia Judiciária, repercutidas em pedidos de explicações ao governo pelo Partido Popular, tornam ainda mais ampla a informação. Noticia-se também que a Inspecção Geral de Saúde investiga o tratamento de crianças. Constroem-se os personagens da tragédia com mais precisão: a criança ganha nome, bem como os pais, o que vem a acontecer, mais tarde, com a avó. Mostram-se em fotografias o pai preso, bem como a casa e uma foto de casamento. Referem-se outros casos ocorridos. Estabelece-se a cronologia da tragédia. No terceiro dia, dá-se conta da nomeação de uma comissão de inquérito pelo governo. Novos personagens continuam a surgir, nomeadamente o presidente da Comissão Nacional de Protecção das Crianças e Menores, Armando Leandro. Este reconhece que a formação dos técnicos das comissões, na detecção casos de maus tratos, é insuficiente. O Ministério da Justiça e o Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, bem como a comissão de Menores de Viseu e um Hospital desta cidade, entram também na problematização do ocorrido. Uma nova instituição a Associação de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental, onde a mãe de Fátima Letícia estivera empregada depois de regressar de França, é referida num texto de balanço (a 17 de Dezembro). Nesse dia, o DN publica também doze perguntas com respostas numa peça intitulada Da denúncia até à protecção. No dia seguinte novas questões surgem, agora ligadas ao estatuto dos membros das comissões, nomeadamente a falta de apoio judicial. Armando Leandro volta a depor e ouve-se o cónego Arménio Lourenço, director do lar de Santo António, em Viseu. Segunda 19, aventa-se a hipótese da adopção para na terça se voltar ao estado de saúde da bébé que já “reclama colinho”. A 22 de Dezembro refere-se uma reunião de trabalho do Director da Comissão Nacional com os técnicos da comissão de protecção de menores de Viseu. No último dia analisado, dia 23, há uma entrevista com Armando Leandro, a figura institucional mais visível na cobertura do DN. Algumas questões se poderiam colocar, desde a citação de algumas fontes com alguma generalidade ou imprecisão, a publicação da fotografia da detenção do pai da criança ou alguns estereótipos imanentes a tais casos. O essencial é que estamos longe da descrição apenas centrada no acontecimento, havendo elementos de contextualização geral da situação. O trabalho redactorial que não fica pelo sofrimento e pela dor, pela raiva e pelo desespero. O DN deu informações úteis aos leitores, alargou a discussão a problemas associados ao “faits divers”: o papel das comissões, a formação dos técnicos, o relacionamento entre serviços de apoio, a necessidade de articular políticas e comportamentos de diferentes agentes sociais. Estamos longe do sangue, suor e lágrimas de algumas versões editoriais. Faits divers que, enquanto tal, só existem como narrativas, embora nasçam no nosso quotidiano.
(1) Cascais, Fernando, Dicionário de Jornalismo: As palavras dos media, Lisboa, Verbo, 2001
BLOCO NOTAS
Faits divers
O estudo dos faits divers tem mais uma referência: o número 14 de Les Cahiers de Journalisme, editados pela Escola Superior de Jornalismo de Lille (França) e pela Universidade de Laval (Québec). A publicação é dedicada a Georges Auclair, recentemente falecido, autor de “Le Mana Quotidien”, obra marcante neste domínio.
O que pensam os jornalistas
Um dos artigos, da autoria de Annik Dubied, da Universidade de Genéve, foi feito a partir de declarações de jornalistas que trabalham na área do faits divers. A investigação considera que o faits divers é um assunto pouco valorizado no espaço público, mas também é mal considerado entre os profissionais entrevistados. As condições em que este se produz são decompostas em quatro fases: o modo como se inicia, o terreno, a redacção/ilustração e o seguimento do acontecimento. Neste última fase surgem questões novas: “Nas declarações dos jornalistas transparece igualmente a profissionalização das fontes (os advogados sobretudo), que se empenham, por vezes, em tentar influenciar como a informação é transmitida.” Uma das dificuldades situa-se no seu contacto com o terreno e na “gestão da carga emocional dos faits divers dramáticos, quando os jornalistas são confrontados com actores directamente implicados.”
O paraíso nunca existiu
Por vezes pensa-se que a imprensa actual é mais espalhafatosa e ligeira que a imprensa antiga. Marine M’Sili, investigadora do CNRS (França) analisa num outro artigo a mudança de significação do fait divers. Um dos jornais que esta estuda é Le Petit Marseillais, que surge em 1868, com o lema de publicar “tudo o que pode interessar as massas”. Logo no fim desse ano, três mulheres, com a ajuda de um herbanário e de uma outra mulher que deita cartas, assassinam os respectivos maridos. Na abertura do processo, o jornal instala um correspondente na cidade onde o processo corre. Relatos detalhados das sessões aparecem na primeira página e continuam nas páginas interiores. O sucesso é imediato: o jornal passa de uma tiragem de 5 700 exemplares para 42 mil, no auge do processo. Em 1914, o jornal vendia 200 mil exemplares. O sucesso, diz a investigadora, repousa sobre factores diversos, apoiando-se em crónica abundante dos faits divers. Não é de hoje a caça ao sensacionalista.
Escreva
Escreva sobre a informação do DN para provedor2006@dn.pt
Solicita-se aos leitores o envio de elementos identificativos: nome completo, morada e telefone de contacto.
Para outros assuntos : dnot@dn.pt
(Publicado hoje, no DN)
Acontecimentos do quotidiano
José Carlos Abrantes
Estamos longe do sangue, suor e lágrimas de algumas versões editoriais dos faits divers.
Os acontecimentos do quotidiano, mais conhecidos por “faits divers”, são objecto de notícia no DN. Para verificar qual a frequência e o tipo de tratamento que o jornal dá a estes acontecimentos, analisámos doze primeiras páginas do DN, os dias 15 de 2005. Além disso, seguimos o modo como foi relatado o caso da bébé de Viseu, Fátima Letícia, entre 14 e 23 de Dezembro, aliás um dos assuntos de uma das primeiras páginas.
Segundo Fernando Cascais (1), os “faits divers” são acontecimentos que estão ligados a paixões e pulsões humanas, sendo uma matéria recolhida da vida corrente. Mas a definição deste campo é complexa. Nos últimos anos o acontecimento de quotidiano ganhou uma dimensão social e o seu tratamento nos media generalizou-se, embora a partir de escolhas editoriais muito diversificadas.
Alguns autores consideram a particularidade que é estes acontecimentos relevarem da revogação de uma norma: norma natural (catástrofes, fenómenos inabituais), norma legal (delitos, roubos, raptos), norma humana (feitos incríveis, caprichos da natureza), norma moral (adultérios, incestos), mesmo um norma forjada pelo hábito. Alguns consideram o “fait divers” como uma narrativa que abastarda o jornalismo. Mas há nomes célebres associados ao estudo do tema. Roland Barthes, um famoso semiólogo francês, defendeu que o assassinato político se distingue do “vulgar” assassinato (faits divers) por este não ter dimensão histórica. Outro nome que se associa ao tratamento jornalístico de tais acontecimentos é Jean Paul Sartre. Este intelectual declarou em 1964 que a imprensa de esquerda não deveria deixar este terreno livre. Mesmo assim, o “fait divers” é frequentemente associado ao anedótico. Outros acentuam o carácter revelador dos problemas sociais dos “fait divers” ou mesmo a função de alerta que tais relatos desencadeiam.
Voltemos às primeiras páginas. Apenas duas, em doze, referem assuntos deste tipo. Uma delas é a de 15 de Novembro, segundo dia em que a criança maltratada é notícia. O DN titulou nesse dia “PJ critica comissão de menores no caso de bébé maltratada pelos pais.” A outra referência foi feita em 15 de Outubro de 2005 “Acusação pede 24 anos de prisão para mãe e tio de Joana”, uma notícia sobre o caso do julgamento da mãe e tio de uma criança assassinada no Algarve. Pela amostra, alguma sobriedade.
Como evoluiu o tratamento noticioso? Na primeira notícia a bébé não é identificada pelo nome, o que acontece logo no segundo dia. E nesse dia, a notícia, embora referindo o estado da vítima, em coma, introduz um elemento de crítica, formulada pela Polícia Judiciária à Comissão de Protecção de Menores de Viseu. O assunto ganha relevo e torna-se Tema do dia, logo no dia a seguir. As críticas oriundas da Polícia Judiciária, repercutidas em pedidos de explicações ao governo pelo Partido Popular, tornam ainda mais ampla a informação. Noticia-se também que a Inspecção Geral de Saúde investiga o tratamento de crianças. Constroem-se os personagens da tragédia com mais precisão: a criança ganha nome, bem como os pais, o que vem a acontecer, mais tarde, com a avó. Mostram-se em fotografias o pai preso, bem como a casa e uma foto de casamento. Referem-se outros casos ocorridos. Estabelece-se a cronologia da tragédia. No terceiro dia, dá-se conta da nomeação de uma comissão de inquérito pelo governo. Novos personagens continuam a surgir, nomeadamente o presidente da Comissão Nacional de Protecção das Crianças e Menores, Armando Leandro. Este reconhece que a formação dos técnicos das comissões, na detecção casos de maus tratos, é insuficiente. O Ministério da Justiça e o Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, bem como a comissão de Menores de Viseu e um Hospital desta cidade, entram também na problematização do ocorrido. Uma nova instituição a Associação de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental, onde a mãe de Fátima Letícia estivera empregada depois de regressar de França, é referida num texto de balanço (a 17 de Dezembro). Nesse dia, o DN publica também doze perguntas com respostas numa peça intitulada Da denúncia até à protecção. No dia seguinte novas questões surgem, agora ligadas ao estatuto dos membros das comissões, nomeadamente a falta de apoio judicial. Armando Leandro volta a depor e ouve-se o cónego Arménio Lourenço, director do lar de Santo António, em Viseu. Segunda 19, aventa-se a hipótese da adopção para na terça se voltar ao estado de saúde da bébé que já “reclama colinho”. A 22 de Dezembro refere-se uma reunião de trabalho do Director da Comissão Nacional com os técnicos da comissão de protecção de menores de Viseu. No último dia analisado, dia 23, há uma entrevista com Armando Leandro, a figura institucional mais visível na cobertura do DN. Algumas questões se poderiam colocar, desde a citação de algumas fontes com alguma generalidade ou imprecisão, a publicação da fotografia da detenção do pai da criança ou alguns estereótipos imanentes a tais casos. O essencial é que estamos longe da descrição apenas centrada no acontecimento, havendo elementos de contextualização geral da situação. O trabalho redactorial que não fica pelo sofrimento e pela dor, pela raiva e pelo desespero. O DN deu informações úteis aos leitores, alargou a discussão a problemas associados ao “faits divers”: o papel das comissões, a formação dos técnicos, o relacionamento entre serviços de apoio, a necessidade de articular políticas e comportamentos de diferentes agentes sociais. Estamos longe do sangue, suor e lágrimas de algumas versões editoriais. Faits divers que, enquanto tal, só existem como narrativas, embora nasçam no nosso quotidiano.
(1) Cascais, Fernando, Dicionário de Jornalismo: As palavras dos media, Lisboa, Verbo, 2001
BLOCO NOTAS
Faits divers
O estudo dos faits divers tem mais uma referência: o número 14 de Les Cahiers de Journalisme, editados pela Escola Superior de Jornalismo de Lille (França) e pela Universidade de Laval (Québec). A publicação é dedicada a Georges Auclair, recentemente falecido, autor de “Le Mana Quotidien”, obra marcante neste domínio.
O que pensam os jornalistas
Um dos artigos, da autoria de Annik Dubied, da Universidade de Genéve, foi feito a partir de declarações de jornalistas que trabalham na área do faits divers. A investigação considera que o faits divers é um assunto pouco valorizado no espaço público, mas também é mal considerado entre os profissionais entrevistados. As condições em que este se produz são decompostas em quatro fases: o modo como se inicia, o terreno, a redacção/ilustração e o seguimento do acontecimento. Neste última fase surgem questões novas: “Nas declarações dos jornalistas transparece igualmente a profissionalização das fontes (os advogados sobretudo), que se empenham, por vezes, em tentar influenciar como a informação é transmitida.” Uma das dificuldades situa-se no seu contacto com o terreno e na “gestão da carga emocional dos faits divers dramáticos, quando os jornalistas são confrontados com actores directamente implicados.”
O paraíso nunca existiu
Por vezes pensa-se que a imprensa actual é mais espalhafatosa e ligeira que a imprensa antiga. Marine M’Sili, investigadora do CNRS (França) analisa num outro artigo a mudança de significação do fait divers. Um dos jornais que esta estuda é Le Petit Marseillais, que surge em 1868, com o lema de publicar “tudo o que pode interessar as massas”. Logo no fim desse ano, três mulheres, com a ajuda de um herbanário e de uma outra mulher que deita cartas, assassinam os respectivos maridos. Na abertura do processo, o jornal instala um correspondente na cidade onde o processo corre. Relatos detalhados das sessões aparecem na primeira página e continuam nas páginas interiores. O sucesso é imediato: o jornal passa de uma tiragem de 5 700 exemplares para 42 mil, no auge do processo. Em 1914, o jornal vendia 200 mil exemplares. O sucesso, diz a investigadora, repousa sobre factores diversos, apoiando-se em crónica abundante dos faits divers. Não é de hoje a caça ao sensacionalista.
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Escreva sobre a informação do DN para provedor2006@dn.pt
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Para outros assuntos : dnot@dn.pt
(Publicado hoje, no DN)