sexta-feira, agosto 08, 2003
IMAGENS: Sonho e realidade
Um livro célebre "Doing things with words" de Austin iniciou uma reflexão que ficou conhecida por introduzir a dimensão performativa na linguagem. A tradução francesa deste livro "Quand dire c’est faire" (Quando dizer é fazer) dá-nos também esta dimensão actuante, e não apenas descritiva, da linguagem.
Nos tempos da ditadura (sobretudo ja no marcelismo) cantores como José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, José Mario Branco, o Padre Fanhais e outros usaram os poderes da palavra para criarem imagens de resistência ao pensamento único da ditadura. E, quem as cantou ou ouviu, muitas vezes concordou com o título de uma delas, de José Mário Branco, "A cantiga é uma arma", mesmo que os afastamentos ideológicos levassem a cantar tal canção com algum desejo de distanciamento. Um elemento então decisivo era o sonho…sonhar que a ditadura poderia um dia cair. Levou muitos anos, mas caíu...
António Gedeão fez uma bela poesia, cantada por Manuel Freire, que mostra bem a relação entre a imagem mental das coisas (neste caso o sonho) e as próprias coisas.
Pedra filosofal
Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.
Eles não sabem que o sonho
É vinho, é espuma, é fermento,
Bichinho álacre e sedento,
De focinho pontiagudo, que fossa através de tudo
Num perpétuo movimento.
Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia, máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista, mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista, que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva, alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
Eles não sabem, nem sonham
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
António Gedeão,
Movimento perpétuo, 1956
Ainda hoje, Pedra Filosofal, é um belo poema. E, mostra com alguma clareza, que entre o sonho e a realidade, nem sempre estão muros intransponíveis.
Um sonho (uma iimagem), a realidade. Ainda hoje…em que as "ditaduras" são mais subtis e menos visiveis.
Um livro célebre "Doing things with words" de Austin iniciou uma reflexão que ficou conhecida por introduzir a dimensão performativa na linguagem. A tradução francesa deste livro "Quand dire c’est faire" (Quando dizer é fazer) dá-nos também esta dimensão actuante, e não apenas descritiva, da linguagem.
Nos tempos da ditadura (sobretudo ja no marcelismo) cantores como José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, José Mario Branco, o Padre Fanhais e outros usaram os poderes da palavra para criarem imagens de resistência ao pensamento único da ditadura. E, quem as cantou ou ouviu, muitas vezes concordou com o título de uma delas, de José Mário Branco, "A cantiga é uma arma", mesmo que os afastamentos ideológicos levassem a cantar tal canção com algum desejo de distanciamento. Um elemento então decisivo era o sonho…sonhar que a ditadura poderia um dia cair. Levou muitos anos, mas caíu...
António Gedeão fez uma bela poesia, cantada por Manuel Freire, que mostra bem a relação entre a imagem mental das coisas (neste caso o sonho) e as próprias coisas.
Pedra filosofal
Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.
Eles não sabem que o sonho
É vinho, é espuma, é fermento,
Bichinho álacre e sedento,
De focinho pontiagudo, que fossa através de tudo
Num perpétuo movimento.
Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia, máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista, mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista, que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva, alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
Eles não sabem, nem sonham
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
António Gedeão,
Movimento perpétuo, 1956
Ainda hoje, Pedra Filosofal, é um belo poema. E, mostra com alguma clareza, que entre o sonho e a realidade, nem sempre estão muros intransponíveis.
Um sonho (uma iimagem), a realidade. Ainda hoje…em que as "ditaduras" são mais subtis e menos visiveis.