segunda-feira, fevereiro 20, 2006
PROVEDORIAS
Imagens que transformam
José Carlos Abrantes
As imagens têm características para além da sua dimensão representativa. Uma delas é a de poderem originar movimentos nos que com elas se relacionam.
O Ocidente viveu intensamente uma polémica sobre as imagens na Idade Média. Vale a pena recordá-la agora quando os cartoons dinamarqueses voltaram a avivar os poderes das imagens. Nessa época havia sobretudo imagens religiosas. Ora, os ícones religiosos, ao representarem Deus e santos, colocavam um problema peculiar. As imagens representavam, tornando o ausente presente. Mas conteriam elas a energia da santidade? Na época a questão foi fracturante, diríamos hoje. Diferentes decisões foram criando doutrinas contraditórias. O último dos Concílios de Niceia, no século VIII, proibiu que a imagem tivesse a capacidade de conter os poderes da santidade. Foi estatuído que a imagem seria apenas uma representação. A imagem não poderia conter poderes de quem é representado.
Esta concepção sobre a imagem continua a ser a mais partilhada. O que quer dizer a imagem? O que representa? Esta característica leva a uma interrogação essencial no domínio do jornalismo. A imagem de informação deve representar os acontecimentos, logo deles deve ter elementos que mostrem a situação descrita ou evocada. Porém, como toda a imagem material é fabricada com recurso a mediações técnicas, a representação reflecte as potencialidades e os limites das técnicas que as criam, das linguagens e da personalidade de quem regista. Por outro lado, evocar um objecto ou uma situação através de uma imagem pode ser melhor conseguido através traços que os evoquem e não apenas a partir de traços “realistas”. A caricatura é um bom exemplo destas imagens, pois os traços desse tipo de desenho são sempre exagerados face às proporções ou situações reais. Já noutros domínios, como a arte, a imagem nem sempre representa. Algumas imagens são expressão do artista ou manifestam uma preocupação de relação com quem vê, situando-se fora da representação. Os questionamentos de tipo representativo são por isso, nestes casos, pouco adequados.
Mas as imagens têm características para além da sua dimensão representativa. Uma delas é a de poderem originar movimentos nos que com elas se relacionam.
Por isso paramos face a um stop na estrada. Se virmos uma sinalização de uma mina, como acontece em certos locais de Angola, afastar-nos-emos, receosos, desse local. Estas imagens implicam um movimento do nosso corpo, têm uma capacidade de transformar um estado, exigindo uma mudança de direcção, por exemplo. Assim se revela a capacidade de transformação das imagens. Há casos muito conhecidos, no domínio social e dos media, de movimentação social por causa de imagens. Um jornalista, Jacob Riis, usou a fotografia mostrando as condições insalubres em que viviam os imigrantes que chegavam a Nova York no fim do século XIX, tendo, com isso influído na criação de melhores condições para os recém-chegados. Já nos anos 90 um vídeo amador mostrou um cidadão americano, Rodney King, a ser brutalmente espancado por polícias. O espancamento e uma primeira decisão judicial favorável a um dos polícias, agitou a comunidade negra e incendiou Los Angeles. O mundo discutiu os direitos humanos e a arbitrariedade que tais imagens revelaram. Mais recentemente atrocidades numa cadeia do Iraque foram descobertas pela fotografia. E Timor instalou-se na consciência global a partir das imagens do massacre no cemitério de Santa Cruz. Por maiores diferenças que existam nestes casos há um traço comum: as imagens podem fazer agir, provocar mudanças no que pensamos, mas também no que fazemos.
Por último, as imagens teriam a virtualidade de nos envolver e de nos mergulhar em estados comuns. Numa ida ao cinema essa partilha é física, mas esta pode também ser mais imaterial. Este envolvimento na imagem é, por um lado colectivo, mas por outro é também interior, pessoal.
Este quadro tem algum valor explicativo para a situação gerada pelos cartoons dinamarqueses. E exige mesmo que discutamos as imagens fora da matriz do citado concílio, no século VIII. Sugerirá também que pensemos que o “pretexto” das imagens foi o mais adequado e que outros “pretextos” poderiam não ter sido tão mobilizadores para o mundo do Islão.
(1) Para as funções da imagem aqui descritas ver Serge Tisseron, Psychanalyse de l’image, Paris, Dunod, 1995, páginas 157-176.
BLOCO NOTAS
Escolhas
Um dos debates que constantemente atravessa o jornalismo é o da objectividade versus subjectividade. Do jornalismo como espelho passou-se ao jornalismo como prisma. Dos jornalistas que mostram a realidade passou-se para os jornalistas que agem sobre a realidade. Na era das fronteiras ténues tudo é difícil de definir com precisão. Mas algumas distinções haverá entre as histórias que o público lê como “mentirosas” (ou fictícias) e as outras que o mesmo público lê como se estas devesem relatar o que se passou, o que ocorreu. Na imagem essa distinção também é cada vez mais contestada. O documentário opõe-se à ficção, mas usa dos mesmos meios narrativos. Para outros as imagens documentais são sempre imagens, logo construções narrativas, logo exteriores ao factos ocorridos e relatados. O que é verdade. Na fotografia há escolhas que o fotógrafo pode fazer dando representações variadas do que é visto. Preto e branco ou cores? Um fotógrafo como Sebastião Salgado privilegiou o preto e branco sendo o mundo a cores. Mas certas negruras do mundo de hoje não serão mais fielmente representadas a preto e branco do que a cores? Num documentário sobre o fotógrafo este declara não apreciar muito a teleobjectiva que permite fazer fotografia a distâncias consideráveis. Dizia, e cito de cor, que a proximidade com os fotografados é algo que está mais de acordo com o seu modo de contar o mundo aos outros. Teremos que concordar que um mineiro da Serra Pelada, na procura de ouro, é o mesmo se fotografado a 1,5 m ou a 20 metros. Mas parece diferente conforme seja retratado muito perto ou muito longe. Outras escolhas do fotógrafo podem ter grande influência na imagem obtida, como enquadrar de certa forma, ou escolher a sensibilidade da película. A mesma realidade pode gerar imagens muito diferenciadas, mas, todas elas, com marcas do mundo fotografado. Para já não falarmos do digital que permite ainda mais escolhas, no antes e no após ao momento da fotografia ter sido feita.
Escreva
Escreva sobre a informação do DN para provedor2006@dn.pt: “A principal missão do provedor dos leitores consiste em atender as reclamações, dúvidas e sugestões dos leitores e em proceder à análise regular do jornal, formulando críticas e recomendações. O provedor exercerá, simultaneamente, de uma forma genérica, a crítica do funcionamento e do discurso dos media.”
Do Estatuto do Provedor dos Leitores do DN
Para outros assuntos : dnot@dn.pt
DN, dia 20 de Fevereiro
Imagens que transformam
José Carlos Abrantes
As imagens têm características para além da sua dimensão representativa. Uma delas é a de poderem originar movimentos nos que com elas se relacionam.
O Ocidente viveu intensamente uma polémica sobre as imagens na Idade Média. Vale a pena recordá-la agora quando os cartoons dinamarqueses voltaram a avivar os poderes das imagens. Nessa época havia sobretudo imagens religiosas. Ora, os ícones religiosos, ao representarem Deus e santos, colocavam um problema peculiar. As imagens representavam, tornando o ausente presente. Mas conteriam elas a energia da santidade? Na época a questão foi fracturante, diríamos hoje. Diferentes decisões foram criando doutrinas contraditórias. O último dos Concílios de Niceia, no século VIII, proibiu que a imagem tivesse a capacidade de conter os poderes da santidade. Foi estatuído que a imagem seria apenas uma representação. A imagem não poderia conter poderes de quem é representado.
Esta concepção sobre a imagem continua a ser a mais partilhada. O que quer dizer a imagem? O que representa? Esta característica leva a uma interrogação essencial no domínio do jornalismo. A imagem de informação deve representar os acontecimentos, logo deles deve ter elementos que mostrem a situação descrita ou evocada. Porém, como toda a imagem material é fabricada com recurso a mediações técnicas, a representação reflecte as potencialidades e os limites das técnicas que as criam, das linguagens e da personalidade de quem regista. Por outro lado, evocar um objecto ou uma situação através de uma imagem pode ser melhor conseguido através traços que os evoquem e não apenas a partir de traços “realistas”. A caricatura é um bom exemplo destas imagens, pois os traços desse tipo de desenho são sempre exagerados face às proporções ou situações reais. Já noutros domínios, como a arte, a imagem nem sempre representa. Algumas imagens são expressão do artista ou manifestam uma preocupação de relação com quem vê, situando-se fora da representação. Os questionamentos de tipo representativo são por isso, nestes casos, pouco adequados.
Mas as imagens têm características para além da sua dimensão representativa. Uma delas é a de poderem originar movimentos nos que com elas se relacionam.
Por isso paramos face a um stop na estrada. Se virmos uma sinalização de uma mina, como acontece em certos locais de Angola, afastar-nos-emos, receosos, desse local. Estas imagens implicam um movimento do nosso corpo, têm uma capacidade de transformar um estado, exigindo uma mudança de direcção, por exemplo. Assim se revela a capacidade de transformação das imagens. Há casos muito conhecidos, no domínio social e dos media, de movimentação social por causa de imagens. Um jornalista, Jacob Riis, usou a fotografia mostrando as condições insalubres em que viviam os imigrantes que chegavam a Nova York no fim do século XIX, tendo, com isso influído na criação de melhores condições para os recém-chegados. Já nos anos 90 um vídeo amador mostrou um cidadão americano, Rodney King, a ser brutalmente espancado por polícias. O espancamento e uma primeira decisão judicial favorável a um dos polícias, agitou a comunidade negra e incendiou Los Angeles. O mundo discutiu os direitos humanos e a arbitrariedade que tais imagens revelaram. Mais recentemente atrocidades numa cadeia do Iraque foram descobertas pela fotografia. E Timor instalou-se na consciência global a partir das imagens do massacre no cemitério de Santa Cruz. Por maiores diferenças que existam nestes casos há um traço comum: as imagens podem fazer agir, provocar mudanças no que pensamos, mas também no que fazemos.
Por último, as imagens teriam a virtualidade de nos envolver e de nos mergulhar em estados comuns. Numa ida ao cinema essa partilha é física, mas esta pode também ser mais imaterial. Este envolvimento na imagem é, por um lado colectivo, mas por outro é também interior, pessoal.
Este quadro tem algum valor explicativo para a situação gerada pelos cartoons dinamarqueses. E exige mesmo que discutamos as imagens fora da matriz do citado concílio, no século VIII. Sugerirá também que pensemos que o “pretexto” das imagens foi o mais adequado e que outros “pretextos” poderiam não ter sido tão mobilizadores para o mundo do Islão.
(1) Para as funções da imagem aqui descritas ver Serge Tisseron, Psychanalyse de l’image, Paris, Dunod, 1995, páginas 157-176.
BLOCO NOTAS
Escolhas
Um dos debates que constantemente atravessa o jornalismo é o da objectividade versus subjectividade. Do jornalismo como espelho passou-se ao jornalismo como prisma. Dos jornalistas que mostram a realidade passou-se para os jornalistas que agem sobre a realidade. Na era das fronteiras ténues tudo é difícil de definir com precisão. Mas algumas distinções haverá entre as histórias que o público lê como “mentirosas” (ou fictícias) e as outras que o mesmo público lê como se estas devesem relatar o que se passou, o que ocorreu. Na imagem essa distinção também é cada vez mais contestada. O documentário opõe-se à ficção, mas usa dos mesmos meios narrativos. Para outros as imagens documentais são sempre imagens, logo construções narrativas, logo exteriores ao factos ocorridos e relatados. O que é verdade. Na fotografia há escolhas que o fotógrafo pode fazer dando representações variadas do que é visto. Preto e branco ou cores? Um fotógrafo como Sebastião Salgado privilegiou o preto e branco sendo o mundo a cores. Mas certas negruras do mundo de hoje não serão mais fielmente representadas a preto e branco do que a cores? Num documentário sobre o fotógrafo este declara não apreciar muito a teleobjectiva que permite fazer fotografia a distâncias consideráveis. Dizia, e cito de cor, que a proximidade com os fotografados é algo que está mais de acordo com o seu modo de contar o mundo aos outros. Teremos que concordar que um mineiro da Serra Pelada, na procura de ouro, é o mesmo se fotografado a 1,5 m ou a 20 metros. Mas parece diferente conforme seja retratado muito perto ou muito longe. Outras escolhas do fotógrafo podem ter grande influência na imagem obtida, como enquadrar de certa forma, ou escolher a sensibilidade da película. A mesma realidade pode gerar imagens muito diferenciadas, mas, todas elas, com marcas do mundo fotografado. Para já não falarmos do digital que permite ainda mais escolhas, no antes e no após ao momento da fotografia ter sido feita.
Escreva
Escreva sobre a informação do DN para provedor2006@dn.pt: “A principal missão do provedor dos leitores consiste em atender as reclamações, dúvidas e sugestões dos leitores e em proceder à análise regular do jornal, formulando críticas e recomendações. O provedor exercerá, simultaneamente, de uma forma genérica, a crítica do funcionamento e do discurso dos media.”
Do Estatuto do Provedor dos Leitores do DN
Para outros assuntos : dnot@dn.pt
DN, dia 20 de Fevereiro